APC em revista 37

[ Orgs ]

Assim como fizemos nas edições precedentes, os artigos reunidos na presente edição contemplam o tema institucional que em grande medida inspirou as atividades, encontros e seminários que mobilizaram a Associação Psicanalítica de Curitiba ao longo do ano de 2021: Entre diferenças e intolerâncias, o que pode a Psicanálise? Sua relevância e seu valor, seja em seu aspecto político e sociocultural ou em sua importância mais especificamente clínica, já se faziam sensíveis nos anos que antecederam a definição do problema como tema institucional, certamente remanescem ainda hoje e, ao que tudo indica, ainda remanescerão em nosso porvir.

O paradoxo do narcisismo, segundo Dolto, é o da possibilidade de se ver nas coisas um espelho que reluz com o reflexo de si mesmo, ainda que a imagem vista sobre a superfície olhada não seja sua. Com efeito, a pessoa se vê refletida nisso para o qual ela olha, sente-se vendo a si mesma, mas aquilo no qual ela reconheceu um reflexo seu, contudo, não é ela. E talvez seja precisamente quando conjugado no reflexivo que o verbo ver revela o que há de essencial no narcisismo: não basta ver, é preciso ver-se nisso que se vê. Há no narcisismo a capacidade de tomar algo ou alguém como espelho, convertê-lo na superfície de um efeito especular. Em uma palavra: refletir-se.

Essa peculiar capacidade de tomar a alteridade como espelho de si sustenta, é verdade, um papel constitutivo na vida imaginária do Eu (moi), escamoteando a carência de imagem própria que lhe é intrínseca com imagens emprestadas daqui e dali, ao notável ponto de lhe render o porte de uma massa figurativa da qual pode então extrair uma espécie de reconhecimento de si. Todavia, se ocorre à criança adquirir esse vínculo particular de identificação com algo em alguém ou algo em geral, esse vínculo não se estabelece propriamente sem a mediação de um Outro através de quem ela é guiada a descobrir o valor especular com o qual as coisas podem se revestir. Para ver-se refletida, é indispensável que alguém especial a faça sentir-se refletida em algo que lhe é apresentado.

A ilustração do manequim olhando-se no espelho que estampa a capa desta revista reúne, segundo nos parece, este duplo aspecto do efeito especular: ver-se a si mesmo refletido sobre uma superfície cuja luz de seu valor reflexivo, entretanto, lhe foi imbuída pelo Outro. O manequim é aquele que se faz ver tal como outrem deseja vê-lo: mas por isso mesmo, ele se verá a si próprio através do brilho especular sustentado por outrem. O paradoxo do narcisismo, é que o brilho sobre a superfície do espelho não pertence naturalmente ao espelho e tampouco é naturalmente visto pela criança: ele é revelado no olhar sussurrante do Outro.

O que pode acontecer, porém, com um sujeito que experimente um engessamento de sua vida psíquica nesta condição especular, em detrimento de seus recursos de ordem simbólica?

 

Associação Psicanalítica de Curitiba. – n. 37 (2022)
ISSN 1519-8456

SOBRE O LIVRO

Publicado em 2022